Lúcia Gonçalves, a cara do formato "Vencer o Cancro"

Zé Gabriel, meu grande amigo e mestre da rádio, foi roubado à vida por um cancro. Lembro-me de que, na ligeireza dos meus 23 anos, percebi que a palavra tinha o peso de uma coisa grave, mas o Zé iludia todos com a sua vontade de trabalhar e a forma obstinada com que encarava as dificuldades. Teve o cancro por companhia ainda durante uns anos, até que o inimigo levou a melhor. Guardo dessa fase a indignação do Zé, contra a dita "doença prolongada"; se ia morrer, que lhe dessem a dignidade de ter sido o lutador contra uma doença identificada e não a vítima de um mal anónimo.
Mas a "coisa ruim" voltou a atacar o meu sossego quando, há poucos anos, comecei a percorrer com o meu pai os corredores do Instituto Português de Oncologia do Porto. Os pais confrontam-nos com o nosso efémero e, aos 30 anos, o cancro já desafiava a minha relação de empréstimo com o mundo.
O primeiro embate é de profunda incredulidade. Logo à partida, a nossa mente está contaminada. Quem passa pela situação faz os raciocínios mais dolorosos: "Tem cura? Vou morrer? Vai doer?" Na sala de espera da Urologia, como em muitas outras, os doentes trocam as suas intimidades de Medicina como quem troca cromos. Os tratamentos que já fizeram, os ditos especialistas que já visitaram, as mezinhas que lhes aconselharam. Sentem-se perdidos. Náufragos num mar de dúvidas e medos.
Achei que não podia ser só mais uma testemunha. Defendo um jornalismo muito mais do que observador da coisa mundana. Acho que, em algumas circunstâncias, para construir é preciso desmontar primeiro. Desta vivência surgiu o conceito, que hoje é um bem sucedido formato de televisão, de Vencer o Cancro.
Combater a fatalidade da doença prolongada, despir de tabus a palavra, destruir velhas imagens e preconceitos. Infelizmente, há muitos caminhos desgastantes que terminam em malogro, mas é preciso dizer que a vida não aparece na estatística do cancro, apesar de serem mais os que sobrevivem do que aqueles que sucumbem. A vida não é notícia, a morte é primeira página.
Na vulnerabilidade da doença e no medo, familiares e doentes procuram desesperadamente respostas. Ficam entregues à grande biblioteca virtual, sem qualquer filtro protector, das curas milagrosas ou descobertas promissoras.
Parti para o formato de TV com o propósito oposto. Informação de grande rigor científico, adequada à realidade quotidiana e, acima de tudo, acessível ao comum dos telespectadores. Imaginei, desde logo, três vértices que seriam os pilares do rigor da informação veiculada pelo e no programa: a Medicina, a investigação e o futuro com novos padrões do conhecimento.
A Sociedade Portuguesa de Oncologia tem o know how médico dos que estão todos os dias na linha da frente desse combate. O IPATIMUP (Instituto de Patologia e Imunologia Molecular da Universidade do Porto) representa a esperança que a investigação científica traz para o cancro. A Fundação Champalimaud significa a marca de modernidade no País. Trata-se de uma nova abordagem que a investigação transnacional possibilita, ao juntar, na mesma estrutura, investigação científica e clínica.
Abrir a alma
Antes de apresentar a ideia à SIC, a primeira pessoa a quem pedi uma opinião sobre o projecto foi a Sobrinho Simões. Nutro grande admiração por este professor e cientista e pelo seu sentido de exigência na comunicação do conhecimento. Pôs-me logo no lugar. A intenção era boa, mas, perante um tema tão vasto, tinha de me focalizar no que era essencial. Aconselhou-me a elaborar uma espécie de guião de questões obrigatórias: predisposição genética, grupos de risco, métodos de diagnóstico, de tratamento, as sequelas, a posição de Portugal em relação ao resto do mundo, o que há de melhor e, por fim, o futuro que a Ciência pode oferecer.
Uma reportagem nos Estados Unidos, a convite da Fundação Champalimaud, deu-me o fio condutor que eu procurava. Num simpósio organizado no Laboratório de Cold Spring Harbor, fui testemunha indiscreta do complexo trabalho de brilhantes cientistas europeus e norte-americanos. Cold Spring Harbor, o laboratório que adoptou o nome da cidade onde John Lennon viveu os últimos dez anos e que representa o ideal de vida suburbana, tem condições privilegiadas para a investigação científica, é casa de sete prémios Nobel e ali trabalham mais de mil cientistas.
Neste subúrbio de Nova Iorque, a livraria é uma das maiores lojas. Ali dei por mim, perdida e maravilhada, a contemplar estantes que pareciam não ter fim. Centenas, milhares de livros sobre Oncologia. Os responsáveis da livraria encontraram uma forma peculiar de os dispor. Havia categorias de acordo com a patologia: cancro da mama, próstata, cólon, melanoma, leucemia e por aí fora. A organização temática também respondia a outra ordem. De cima para baixo: o diagnóstico, o tratamento, a auto-estima, bibliografia de prevenção e defesa, testemunhos na primeira pessoa, publicações mais técnicas, cuidados paliativos, a dor, a morte.
Comprei na livraria uma série de postais que representavam o protagonista mais importante do programa e objecto de todos os cuidados: o doente. A Caral Works é uma organização que apoia doentes afectados pela quimioterapia, através de mensagens positivas e cheias de humor. Num dos postais, uma mulher careca exibe um sorriso e brinca com a situação: "Sempre me disseram que eu tinha uma boa cabeça em cima dos ombros." Era este espírito inconformista, antivitimização, que eu pretendia transmitir, desde a primeira hora.
Regressada dos Estados Unidos, já com um esboço pronto, consegui entusiasmar aquelas três instituições a partilharem comigo a chancela de credibilidade de Vencer o Cancro. Sem conhecer ninguém no mercado, meti os pés ao caminho e acabei por ter sorte. A Novartis Oncology foi o parceiro que permitiu pôr o sonho de pé. Um cúmplice atento, mas alheado das questões editoriais.
Para realizar o programa antecipava dificuldades, mas a abertura e a disponibilidade de quem faz do combate ao cancro a sua principal missão na vida demoveram-me de receios infundados.
Fui para o terreno e, de repente, parecia que estavam todos (médicos, enfermeiros, cientistas, doentes, famílias) à espera de uma oportunidade destas. Para participar, uns, os outros para abrir a alma. As objectivas das câmaras têm sido, assim, fiéis depositárias de muitas alegrias, frustrações, batalhas silenciosas, mas também de olhares de esperança. À minha volta, há uma equipa apaixonada e empenhada, que honra a grande dádiva que todas estas testemunhas da vida real nos têm concedido.
Nas salas de Oncologia, não há aquele rebuliço do imediato. Tudo corre sem pressas para quem sabe que o tempo não se pode perder e o que se tem deve ser saboreado. A vida assume outra dimensão, a da sobrevivência. Muitos, milhares, sobrevivem nos intervalos da doença. Se, nuns casos, o cancro rompe os laços com a vida, noutros, na esmagadora maioria, cria novos.
Um símbolo chamado Raquel
Impressionaram-me muitas estórias. O casal que não fazia amor porque achava que o cancro era contagioso. A mãe que não queria ficar acamada porque estava sozinha com os filhos. O doente que vivia o cancro em segredo e em solidão. A impotência de pais perante um papão ganancioso que ameaçava roubar-lhes a filha. Os doentes que preferem ser tratados em hospitais gerais do que num instituto de Oncologia, evitando, assim, um lugar que, para eles, significa uma vida monocromática e onde se vai para morrer. O casamento que não resistiu à pressão.
O cancro fortalece ou dilacera as relações. Expõe as nossas feridas interiores, num momento da vida em que nos esforçamos para que a cicatriz se mantenha tal como está. Depois do choque, da negação, a maioria consegue manter as aparências e, muitas vezes, contra a frieza da Matemática, superar-se.
De todas as imagens, guardo as brincadeiras de Raquel, na água, com os filhos. Uma resistente de cancro da mama. Sempre disponível para motivar os outros, além dela própria. O cancro voltou a pregar-lhe uma rasteira. Mal sabe ele que, com a Raquel, não são favas contadas. Vai ter luta. Os tratamentos debilitantes, o desgaste psicológico, nada vai abalar a fé desta mulher. Tal como muitas e muitos, é tentada pela revolta e pela tristeza. Mas, mesmo com as células doentes, Raquel sabe que é preciso preservar a mente. É aqui, aliás, que começa ou acaba a resistência.Podemos não conseguir arrancar o mal pela raiz, mas podemos enfrentá-lo. Não como maratonistas, mas com um fôlego de cada vez - aprendendo a conviver com ele e... a vencê-lo.
fonte: Visão

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