João Ricardo disse "não" ao papel de Armando e até escreveu 12 folhas com os "porquês". Custódia Gallego hesitou em fazer de Gi. Mas a confiança um no outro fê-los dizer "sim" à SIC. Da indisciplina do riso aos abraços do público e ao "grunhir" em palco... Eles contam como é ser um Coutinho.
Qual das duas mulheres se namora mais à frente do espelho: a personagem Geraldina (Gi) ou a actriz Custódia Gallego?
Custódia Gallego: Seguramente, a Gi no seu dia-a-dia. Eventualmente, eu, Custódia Gallego, como actriz.Enquanto a Gi quer ser bela e elegante, o Armando Coutinho arrota, cospe a comida...
Como tem sido dar vida a esta personagem em Laços de Sangue (SIC)?
João Ricardo: Acho que é fácil e é difícil. É difícil porque não se pode entrar no exagero. Mas este Armando Coutinho, acredito, faz parte do imaginário português. Comecei a ler livros do jornalista e escritor Baptista-Bastos e há um imaginário português onde há um homem que é assim...Este é um homem sem modos e com "tiques".
Fez sugestões à SIC para construir este Armando Coutinho?
J.R.: Eu não sugeri nada porque não queria este papel. Escrevi 12 folhas a explicar porque é que não queria fazer esta personagem. Mas agora estaria completamente arrependido.
E o que alegou nessas páginas?
J.R.: Achei que este papel se colava a outras personagens que já tinha feito e foi por isso que as escrevi. Vi a roupa, o penteado, os textos...
Remetia-me para outra personagem que fiz noutra novela muito recentemente.
C.G.: O medo dele foi tão grande como o meu, mas ele manifestou-se de outra maneira. Os papéis cómicos têm de ser verdadeiros...
São papéis mais perigosos.
J.R.: Sim, era medo... Mas eu tinha um acordo tácito comigo que era poder trabalhar com a Custódia [Custódia revira os olhos e faz cara séria]
O que o fez recear tanto o papel de Armando Coutinho?
J.R.: O facto de ele ter de entrar por um caminho que tinha de ser exagerado em muitas coisas.
Entre tantos exageros já se deixou vencer por algum dos "tiques"?
J.R.: Sim. Acabo as frases no "estes". Digo "já fizestes" ou já "comestes". Quando se faz uma personagem quase um ano, às tantas, tornamo-nos, ainda que sem querer, nessa outra pessoa. A única coisa que tenho em comum com Armando é estar feliz com a vida. E aqui, em estúdio, sem querer, com a Custódia começamos logo a inventar umas bocas e piadas...
Que buscas e pesquisas fizeram para criar estes papéis?
C.G.: Eu fiz o costume. Em casa decoro o texto e ao ensaiar sozinha experimento e penso: "E se fizesse assim?", "E se amasse assim?" Tento perceber sozinha que formas podem ser as mais correctas. Quando chego aos estúdios eu e o João cruzamos os nossos trabalhos individuais.
J.R.: Aos sábados leio sempre uma hora, descanso outra e depois, na hora seguinte, volto a ler os textos. E depois chego cá e digo que não sei o papel! (risos)
C.G.: Pois, pois. Ele faz isso para tentar decorar os textos comigo. Mas eu já sei qual é a técnica dele...
Mas encontraram alguma inspiração em particular?
J.R.: O meu pai trabalhou durante muitos anos nas Rua das Portas de Santo Antão [Lisboa]. Numa empresa que se chamava A Electrificadora e, nessa altura, tinha como amigos o projeccionista do Cinema Olímpia e o senhor da bilheteira do Cinema Odeon. Ele foi-me ensinando e explicando coisas para este papel.
As memórias e dicas do seu pai têm sido preciosas ajudas...
Agora já não falamos tanto. Mas há trejeitos que, embora não faça de propósito, quando os vejo na televisão penso que podem ter um bocadinho do meu pai.
E a Gi? Foi buscá-la a algum lado?
C.G.: A criatividade que dou às personagens tem que ver com as referências de toda a minha vida. Fiz a pesquisa dentro de mim. O que tento sempre fazer é, entre uma novela e outra, ter algum intervalo para ir à rua, ir à mercearia... É aí que vou beber pensamentos, comportamentos, atitudes. No fundo, fiz um bolo e que é a minha Gi. Ela é a nova-rica que está contente com a vida.
Ele é expansivo e desmedido, ela é elegante e delicada. Têm ou não soltado gordas gargalhadas durante as gravações da novela?
C.G.: Sim. Porque o engraçado aqui é o efeito-surpresa. Surpreendemo-nos a toda a hora. Não concordas comigo, João? Quando nos rimos um do outro é precisamente porque nos surpreendemos.
J.R.: O que há neste núcleo em particular é que há um lado de surpresa. Em cada cena que fazemos há uma marcação-base, mas nunca se sabe ao certo o que vai acontecer. E há também uma equipa técnica que também ri e às vezes criamos alguma indisciplina porque nos rimos.
C.G.: Sim, mas não há excesso de riso!
À frente das câmaras, o João Ricardo chega mesmo a "grunhir"...
J.R.: Há duas coisas nesta personagem que aconteceram sem querer. Uma delas foi o "isse". Tudo aconteceu quando eu estava a fazer uma leitura e a Custódia, que estava ao meu lado, emendou-me enquanto colega e saiu-me o "isse". E ficou. Este "grunhir" foi porque comecei a rir e meti uma coisa cultural.
Referem-se a estes papéis como "perigosos". Temeram cair no ridículo?
J.R.: Julgo que se tem sempre essa sensação, pensa-se quando se está a ir a mais... Há cenas que ao fazerem-se até se tem um pouco de vergonha. Mas depois também há outras. Eu, por exemplo, e a esta altura, já estou a pelar-me todo por fazer a cena do striptease!
C.G.: Ó João, acho que isso da cena não era para se dizer! (risos)
J.R.: Acho até que deveria fazer-se uma sitcom com esta família. Eles têm audiência.
A Custódia está com um ar sério. Não concorda?
C.G.: Não sei... Receio que aumentando um texto destes já não seja confortavelmente construído. Seja um esticar do elástico que pode partir.
Em televisão preferem fazer papéis cómicos ou dramáticos?
C. G.: Tenho preferência por papéis bons!
J.R.: Eu adorava fazer um vilão.
C.G.: Ah! Espere, eu cá também! Nunca fiz uma má, má.
J.R.: Quando digo um vilão, falo de um papel de mau que fizesse as pessoas odiarem-me. Um toxicodependente, um assassino...
C.G.: Eu gostava de experimentar a raiva das pessoas porque seria sinal de que as pessoas acreditavam nessa personagem. Eu gosto quando falam comigo como se eu fosse a personagem. É o meu patamar para dizer: "Este papel está credível."
E nas ruas? Que comentários têm ouvido?
C.G.: As pessoas têm sido supersimpáticas. Aqui há dias a minha vizinha veio dar-me um beijinho. E ali vi que havia um certo agradecimento por eu estar a diverti-la ou por estar a fazê-la passar bons bocados. E é, precisamente, isso que mais me agrada.
J.R.: Há pessoas que me dizem: "É um momento tão feliz que você me dá. Nós só vemos a novela para vermos a família Coutinho." E isto é verdade... E há muitos homens que vêm abraçar-me.
C.G.: Eu às vezes sinto um pouco de vergonha. As pessoas vêm falar-me e eu não sou a personagem...
Numa altura em que o País manifesta revolta e angústia face a fechos de escolas, desemprego e outros problemas sociais, pergunto: sentem que são uma "lufada de ar fresco" para os portugueses?C.G.: Espero que sim. É para isso que serve a televisão.
J.R.: O que acho é que nesta novela há informação imediata do que está a acontecer. No dia a seguir há um resultado imediato.
E qual tem sido a reacção do seu filho Rodrigo, de cinco anos?
J.R.: O meu filho diz que sou 'totó'. Percebe quem é o Coutinho e a Gi. É muito engraçado como ele vê a novela... Ele até faz o grunhir. Diria que é um bocadinho o sentir que somos um herói de um filho.
O que há de mais português na Gi e no Armando Coutinho?
J.R.: O Armando tem um bocadinho da aldrabice portuguesa, seja no negócio da minhoca...
C.G.: E a Gi é a nova-rica armada em esperta. É uma sobrevivente porque também trabalha, ela gosta de fazer dinheiro.
Acreditam que há por aí muitos Armandos Coutinhos e muitas Geraldinas?
C.G.: Espero que sim, é sinal de que há por aí muita gente feliz e com boa vida.
J.R.: E que vivem um amor incondicional...
E a Custódia ver-se-ia a apaixonar-se por um homem sem maneiras, mas com humor?
C.G.: Ao apaixonarmo-nos por uma pessoa significa que nos apaixonamos por tudo o que ela é, independentemente de haver outras pessoas que só vêem defeitos.
Em entrevista ao DN, o argumentista Aguinaldo Silva, co-responsável pela supervisão do argumento de Laços de Sangue, explicou o êxito da novela dizendo: "Os portugueses revêem-se numa certa desesperança." Concordam?
C.G.: Os portugueses sempre foram desesperados. Todos os anos temos uma qualquer coisa parecida com crise. "Ai este Verão não vamos ter laranjas", "Ai já não se come batata como deve ser". Sim, se calhar há sempre uma certa desesperança que nos mantém.
J.R.: A minha desesperança é pensar no que é que este País vai dar daqui a 16 anos quando o meu filho de cinco for maior. Eu acho é que nós, portugueses, não gostamos de nós e temos sempre a atitude de que quem tem êxito não vale nada.
Na vossa opinião, para onde deve caminhar a ficção nacional?
C.G.: O tempo de construção é importante para haver mais qualidade. Mas há que querer melhorar essa qualidade até para se ter o público do nosso lado. E acho que o público é exigente.
J.R.: Eu continuo a achar que não sou bom actor em televisão. Mas... sim, o tempo é fundamental para as produções ficarem bem feitas.
C.G.: Eu sou como aquele do futebol... O The Special One...
Refere-se ao treinador José Mourinho...
C.G.: Exacto. Eu só acredito no trabalho
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